«Mas eu não quero estar a fazer “papel de vítima” para as outras pessoas verem». Este é um comentário que ouço várias vezes quando sugiro aos meus pacientes que reconheçam a vítima que foram em determinado momento das suas histórias. Vamos falar de vitimização e de como este processo é (erradamente ou não) interpretado.
Existe uma ideia generalizada muito negativa sobre o que é a vitimização e que corresponde ao estereótipo da pessoa que se queixa, sem verdadeira motivação para a mudança ou melhoria e que coloca nos outros a responsabilidade de a fazerem sentir melhor. É também comumente considerado que há uma utilização do problema/sofrimento para obter determinado tipo de comportamentos ou benefícios por parte dos outros e assente no exagero das dificuldades em questão.
No entanto, o processo de vitimização não é necessariamente isso, mas sim algo que representa um processo psicológico que pode e dever ser vivido, sem que isso signifique a tentativa de obter qualquer reação dos outros. Pelo contrário, é um trabalho interno de lidar com os acontecimentos traumáticos, perceber os impactos gerados por essas circunstâncias e as possíveis aprendizagens trazidas por elas, enquanto experiências de vida.
Enquanto trabalho de desenvolvimento, a vitimização permite a gestão emocional do medo, da culpa, da vergonha e de outros sentimentos muito associados a eventos traumáticos e a distribuição adequada das responsabilidades.
A conotação negativa associada ao termo «vitimização» dificulta este trabalho, pois todos fazemos resistência à ideia de sermos «queixosos», histriónicos ou apelativos. Este preconceito dificulta diversos aspetos positivos e necessários deste processo que servem a resolução do trauma: a possibilidade de viver o poder regenerador e terapêutico deste processo, importantíssimo para que a vítima elabore sobre esta experiência e readquira um sentido de controlo sobre a sua própria vida; a recuperação do sistema emocional da vítima através da desconstrução das emoções negativas da vítima face a si própria; a aceitação de que o evento traumático aconteceu e o impacto que teve, como forma de aumentar o auto-conhecimento e expandir a evolução pessoal aos mais diversos níveis da identidade.
O trabalho de vitimização é um trabalho terapêuticos destes vários pontos que permite que a vítima se aceite e à sua história, ao invés de continuar a sentir que deve esconder os seus acontecimentos de vida e sentimentos associados, e carregar sozinha o seu intenso sofrimento psicológico como se devesse ter vergonha daquilo a que foi submetida.
Claro que quando a vitimização não tem esta faceta terapêutica e voltada para a mudança e melhoria do sofrimento psicológico, ele pode ser visto como meramente uma forma de ventilação emocional e de apelo, e pode realmente ser apenas isso. Nestes casos, a pessoa que viveu o trauma pode ficar bloqueada na sua ação e a sentir que o seu bem-estar depende do que os outros possam dizer-lhe ou fazer por si, abdicando ainda mais do controlo sobre a sua vida e perpetuando o sentimento de vitimização e trauma na sua vida. Esta abordagem ao trauma tem a desvantagens de comprometer o processo de recuperação do bem-estar emocional e pode alimentar sentimentos de solidão e incompreensão.
É importante que tenha a capacidade de procurar dentro de si que o processo de vitimização seja genuíno mais também regenerador. Ele não é um processo ou meio de interação com os outros, mas sim um processo de autoconhecimento muito pessoal e privado que reorganiza a experiência traumática numa nova narrativa que fortalece a pessoa que viveu o trauma e aumenta a sua confiança nas próprias capacidades pessoais para gerir o stress e lidar com momentos de fragilidade e de vulnerabilidade, protegendo-se e, se necessário, sendo capaz de proteger outros.
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