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Adolescência (Netflix): uma série sobre tudo o que não queremos ver – mas precisamos

  • Foto do escritor: Diana Cruz
    Diana Cruz
  • 23 de abr.
  • 5 min de leitura

Podíamos pensar que Adolescence/ Adolescência (Netflix) era mais uma série sobre adolescentes e a “típica fase conturbada” da adolescência.


Para começar, o meu percurso profissional obriga-me a clarificar desde já que a adolescência não é uma fase “tipicamente conturbada”! Mas disso não venho tratar hoje.

O que quero clarificar aqui é que Adolescence/ Adolescência é um recorte de uma atualidade a que os jovens estão especialmente sujeitos, e que exige uma leitura sistémica e mais contextualizada.


Adolescence/ Adolescência não nos transporta, simplesmente, para a adolescência que vivemos ou em que participamos enquanto cuidadores. Adolescence/ Adolescência revolve-nos em todos os cantos mais sombrios do adolescente que fomos (somos) e do adulto que somos (queremos ser, ou não queremos ser), num contexto social e económico que se move a uma velocidade alucinante na carruagem da Internet e das redes sociais, deixando-nos sem controlo e, muitas vezes, cegos para esse efeito.

 

Jamie, por quem sentimos raiva, repulsa, compaixão, vontade de proteger e de castigar – tudo, em simultâneo – vive a sua adolescência, numa família onde a regulação emocional e a comunicação aberta, não são o padrão habitual. Estes são pais vulneráveis, como todos nós, que carregam as suas próprias dificuldades emocionais, laborais e sociais; não são super-heróis, não são pais perfeitos como aqueles que “vemos” no Instagram e nos fazem encolher perante as nossas próprias fragilidades e incertezas.


Jamie, por quem sentimos tudo isto ao longo dos episódios, vive a sua adolescência numa escola com as suas próprias dificuldades, com professores que, também eles, têm dificuldade em acompanhar toda a evolução digital.


Jamie, é mais um dos adolescentes que está a crescer imerso numa cultura cheia de expectativas e conceitos extremistas, a assistir à ascensão de ídolos que nunca o deveriam ter sido e que veicularam ideias como os de masculinidade tóxica, da clivagem entre os homens e as mulheres, da dureza, rudeza, violência, como modos de afirmação e que não passam de desumanizações perversas.


Jamie como todos os adolescentes, não vamos esquecer, tem as suas missões de adolescência para resolver individualmente, neste macro contexto: a sua relação com a família, com os pares; mas também a sua identidade, e a sua identidade neste mundo digital tão maior do que o mundo era antes da (des)informação circular “à velocidade da luz”.

 

Sentindo-se uma desilusão para o pai, a quem tanto quer agradar e por quem quer ser respeitado e admirado, numa família onde não conseguiu encontrar suporte para as suas questões existenciais quanto à realidade atual e quanto ao seu mundo (emocional) interno, este jovem desenvolveu um modelo inseguro de vinculação. Este padrão interno de funcionamento é marcado por crenças negativas face ao próprio e aos outros, e que vamos descobrindo à medida que conhecemos melhor Jamie.


Ele sente-se frágil, sente-se diminuído e insuficiente, no seu próprio contexto relacional; ele não se identifica com os rapazes másculos, valorizados pela masculidade tóxica e que pressionam os rapazes para serem duros, brutos, corajosos e atrevidos, fisicamente dominantes, poderosos e idolatrados pelas raparigas. Pelo contrário, sente-se menos capaz do que muitos desses rapazes, desvalorizado e rejeitado pelo sexo oposto, desintegrado, frágil. A sua auto-crítica é feroz, o seu ego muito frágil, ferido.


O modelo inseguro de vinculação também contribui para o desenvolvimento de crenças negativas face aos outros, nomeadamente, face às raparigas que são o objeto de atração sexual de Jamie. Daqui ao seu embrenhar na cultura “incel”, tão exposta atualmente nas redes sociais, promovida por alguns dos tais machos tóxicos que convencem estes jovens de que o caminho é desumanizarem-se e embrutecerem, parece ser sido um salto incontornável para o protagonista.


Esta cultura incel, ela cliva. Ela faz das raparigas um grupo de seres caprichosos que inferiorizam um grupo considerável de rapazes que consideram “menos aptos e desejáveis”; e, faz dos rapazes que não seguem os padrões da masculinidade tóxica, um grupo de rejeitados, ridículos, desintegrados, para sempre celibatários, incapazes de serem atraentes e amados.


Nesta situação, encalhado nas suas tarefas de desenvolvimento, Jamie alimenta o seu próprio ódio pelas raparigas (materializado na rapariga que se tornou a sua vítima mortal), dirigindo para ela os seus sentimentos de inadequação social, de ser uma desilusão para o seu homem de referência (o pai), as suas crenças de inferioridade e insuficiência. Jamie, canaliza o seu ódio por si próprio, para esta rapariga.


Como o seu pai, este jovem tem dificuldades em regular as suas emoções e passa ao ato, perde o controlo dos seus comportamentos, agindo sobre a extrema violência que sente dentro de si e que a cultura de masculinidade tóxica lhe diz que um homem deve revelar, sobretudo, violentando as mulheres.


Durante quase todo o filme, vemos Jamie perdido, confuso, quase ausente da realidade, naquilo que acredito ter sido a sua dificuldade inicial em encaixar duas peças muito difíceis de encaixar da sua adolescência: a de crescer a ser gostado e sem intercorrências, e a de se sentir um macho com poder nesta cultura desumanizante.


Neste conflito existencial tão profundo, Jamie nega o seu crime mesmo perante imagens inequívocas, assistidas por si e pelo seu pai, que não mais é o mesmo depois de as visualizar, esmagado pela dor e pela culpa.





Nesta série, vivemos também nós um conflito: o de querer odiar o Jamie e sentirmos uma profunda compaixão por este miúdo, que queremos salvar, por limites, proteger.


O Jamie assassinou cruelmente uma colega, descontrolado pelas marcas profundas no seu ego rejeitado, pela pressão absurda para ser o “homem forte”, desumanizado, sem emoções ou vulnerabilidade que a cultura “incel” – explorada na série – lhes impõe.

Também vivemos o tumulto desta família que deixou tantos silêncios por preencher, tantas respostas por compreender e tanta vida por partilhar com este filho; que, fundamentalmente o desconhecia, assim como desconhecia este enorme pedaço da sua vida que era a “vivência” digital deste rapaz.


Não nos conseguimos descolar da dor desta família porque à medida que a série nos conquista percebemos o inevitável: todos nós somos um pouco aquela família. Temos as nossas inseguranças, não sabemos lidar com todos os desafios da parentalidade, possuímos as nossas características pessoais... desconhecemos esta vida digital que os adolescentes têm agora, na internet. Muitas vezes, para nossa própria proteção preferimos pensar que é mais seguro assim porque eles estão em casa nos seus quartos, onde os podemos ver e sentir a qualquer momento.


Esta série destrói violentamente esta nossa ilusão. Tudo pode estar a acontecer debaixo no nosso teto, num vórtice da vida experiência humana que muitos de nós, até pelo handicap geracional, desconhecemos (desconhecíamos, até aqui).


Adolescence/ Adolescência, tão oportuna, não mostra só os trilhos invisíveis da adolescência atual; não mostra como as famílias e o crescimento se mutaram; não mostram a adolescência como problemática, horrível, terrifica.


Ela mostra como todos nós, adolescentes e adultos, procuramos o nosso lugar no mundo, tentando a todo o custo dignificar-nos e empoderar-nos. Muitas vezes, fazemo-lo tendo como referência modelos que nos desumanizam, que nos esperam invulneráveis, quanto tudo em nós é vulnerabilidade e dúvida.


Numa realidade tão extremista como aquela que estamos a atravessar, onde a diversidade tão falada, esconde preconceitos e expectativas fechadas, como a masculinidade tóxica, precisamos de mais pluralidade. Mas pluralidade real, verdadeira, daquela que assume todas as possibilidades aos adolescentes rapazes que crescem, às raparigas que crescem com eles e à relação entre ambos. Não existe uma forma de másculo, ou uma fórmula para se ser amado.



A certeza não nos atesta valor, a incerteza não tem de nos manchar o ego. Se os nossos padrões familiares herdados nos moldam, os nossos contextos sociais também o fazem e “Adolescência” lembra-nos bem que carregamos todos estes padrões e modelos connosco, insidiosamente, invisivelmente e, tantas vezes, pesadamente.

 
 
 

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© 2023 por Daniela Ventura

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