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  • Foto do escritorDiana Cruz

Borderline: na fronteira entre o amor e o abandono

Viver com o transtorno de personalidade borderline é uma jornada complexa e desafiadora, onde as emoções podem oscilar como ondas turbulentas, testando os limites da compreensão e da estabilidade emocional. O transtorno, muitas vezes mal compreendido, não se resume apenas a flutuações de humor intensas, mas envolve uma intricada interação de fatores psicológicos e biológicos. Este artigo busca lançar luz sobre o transtorno borderline, desvendando as suas nuances e oferecendo uma perspectiva para aqueles que buscam entender melhor as experiências daqueles que convivem com essa condição. Ao explorar os desafios e as estratégias de enfrentamento, pretendemos contribuir para uma maior compreensão e empatia em relação a essa realidade complexa e muitas vezes invisível.

 

Deixem-me começar pelo fim: pelo lugar em que Borderline é um termo (psiquiátrico e psicológico) associado a ideias como “mau/ falta de carácter” e “Ui… é melhor fugir”; no fundo, a fama de serem insuportáveis e inabordáveis. E de que isso tudo é uma “coisa” que só a eles diz respeito.

 

Desde já vos digo: este artigo não vai acabar assim.

 

Neste artigo vamos tentar explicar o que é este padrão emocional e relacional. E por isso, ele pode interessar a quem tem o diagnóstico, a quem vive e se relaciona com quem tem o diagnóstico e a quem tem interesse em saber mais. Lembrem-se de que tudo o que caracteriza e revela esta doença se desenrola e manifesta no palco das relações - e que não é possível falar de perturbação Borderline sem falar dos desafios dos relacionamentos, dos afetos e da ligação aos outros.

 

Este artigo interessa também a todos nós pois, como vais poder confirmar por ti próprio/a, muitos dos aspetos que caracterizam pessoas com este diagnóstico, existem em nós, mais ou menos isoladamente e maior ou menos medida. Todos sentimentos algumas destas coisas, de vez em quando. Parece confuso?! Continuem, connosco.

 

Em primeiro lugar quando falamos do diagnóstico de perturbação Borderline, referimo-nos a pessoas que estão verdadeiramente doentes. Elas não têm mau feitio e o padrão que lhes é mais comum é francamente gerador de sofrimento e de dificuldades nas mais variadas áreas de vida. Escusado será dizer que insisto em que se trata de uma doença também das relações e da rede de apoio, porque a área mais afetada é precisamente esta: a dos relacionamentos, que quanto mais íntimos mais difíceis se podem tornar de gerir.

 

A doença, não é uma escolha e, por isso, a culpabilização da pessoa que dela sofre não deveria ser uma possibilidade. E este é um dos aspetos mais difíceis de compreender quando buscamos saber mais sobre doença Borderline, já que muitas vezes, pelo seu cariz crónico e muito impactante no comportamento e interações da pessoa, parece revelar o seu “mau génio” ou a sua “maldade”, a sua indesejável personalidade. Estas pessoas não são más ou, posto de outra maneira, são como todas as outras pessoas – existem pessoas bondosas, pessoas maldosas e a doença pode existir em qualquer dos casos.

 

É importante integrarmos isto porque uma análise mais atenta deste tema revela, facilmente, que as pessoas com diagnóstico de padrão Borderline têm mais dificuldade em melhorar pela atitude e expectativas negativas que os outros (incluindo, os profissionais de saúde, por vezes!) têm para com elas, tornando-lhes mais difícil obter a ajuda e o suporte emocional necessário para melhorarem desta condição e terem vidas com mais saúde mental e geral.

 

Mas, afinal, do que estamos a falar quando falamos de perturbação Borderline?!

 

Este termo é utilizado como categoria de diagnóstico para descrever pessoas com características muito especificas, nomeadamente, impulsividade, instabilidade emocional, intensidade emocional exacerbada, baixa tolerância à frustração e dificuldade em regular as próprias emoções quer na presença de eventos externos, quer na presença de eventos internos (pensamentos e sentimentos).


Assim, quando estamos na presença destas características, lidamos com pessoas que são muito intensas quer nas suas alegrias e doçura como na sua tristeza, sentimentos de tristeza e desilusão. São também muito frequentes de raiva e a intensidade emocional é, em muitos casos, sentida pelos outros como desproporcional face à gravidade da situação que a despoletou. Por esse motivo, podem tornar-se hostis, agressivos e “desagradáveis” para os outros.


As alterações de humor fazem parte deste quadro podendo variar do grande entusiasmo e bem-estar, ao humor depressivo, opressivo, ansiedade e irascibilidade, contribuindo assim para uma sensação de incoerência, que o fazem assemelhar-se a um tornado perfeitamente descontrolado por tão avassaladoras e dominadoras serem as suas emoções.

 

Existem ainda outros sinais de que podemos estar na presença de uma pessoa com um padrão emocional, comportamental e relacional Borderline. Estas pessoas revelam muito comumente comportamentos de risco e tendencialmente autodestrutivos, como abuso de substâncias e álcool, condução perigosa, gastos descontrolados e jogo patológico, sexo desprotegido e outras formas mais explícitas de autodestruição como os comportamentos autolesivos (nomeadamente, cortes e queimaduras, entre outros), mesmo que sem intencionalidade de morte.

 

Na minha perspetiva e experiência clínica, parece-me que este conjunto de comportamentos e sentimentos é aquilo que concorre para que estas pessoas sejam consideradas conflituosas, “difíceis” e indesejadas quer nos grupos de amigos ou de trabalho, como, frequentemente, na própria família. 

 

Por isso é tão importante que nos dispamos dos nossos julgamentos e preconceitos e possamos aprender mais.

 

A verdade é que o tema da morte toma aqui uma grande evidência. Os pensamentos de morte, estão quase sempre presentes nestas pessoas e, muitas vezes, a intenção de suicídio também. A morte é para estas pessoas com doença Borderline, uma ideia que conforta porque representa uma saída para um grande sofrimento e para angústias que parecem infinitas e inultrapassáveis. A morte parece assim trazer um sentimento de controlo e poder numa vida em que a pessoa sente um enorme sofrimento e sentimento de impotência.

 

Os seus comportamentos de impulsividade, denotam uma dificuldade em interpretar as várias consequências de determinados comportamentos e reações para si mesmos e para os outros, criando um círculo vicioso que torna esta doença cada vez mais um padrão disfuncional de estar em relação, em que o paciente se sente desamparado e abandonado. Voltaremos a estes sentimentos mais tarde, pois esta é a camada mais profunda de quando falamos de perturbação Borderline – é também a mais bonita de entender, e aquela que os outros, familiares e amigos, mais procuram compreender.

 

Quais são então as angústias dilacerantes e tão bem guardadas no coração das pessoas que sofrem com este padrão Borderline?

 

É curto, mas complexo: a rejeição, a separação, o abandono. Estes são os mais medos vividos porque quem se sente sempre “no limite” (borderline) entre a vida que os outros parecem estar a viver e a vida que só eles parecem ver.


Estes são os três terrores destas pessoas. E qualquer um deles representa uma ameaça emocionalmente insuportável para a qual até a morte parece uma melhor solução. Estas pessoas têm dificuldade na definição dos limites de si e dos outros e por isso a distância de alguém de quem gostam muito pode ser entendida como um abandono, tão intenso como a própria morte de uma parte de si, como se um membro amputado se tratasse. Mas sendo o outro hipoteticamente uma parte de si - há também o medo de se perder nele, de se diluir.

E é por isso que estas pessoas divergem tanto entre querer ser íntimos e temer a intimidade. Em querer confiar e ligarem-se, e debaterem-se se os outros se aproximam. Existe uma enorme fragmentação da identidade, estas pessoas não se conhecem bem. A falta de estrutura das suas identidades é um produto de toda a vida terem tipo neste padrão borderline a sua arma para de defenderem do sofrimento que as relações com os outros lhes causavam. São frequentes as histórias de negligência, abandono afetivo, abuso de diferentes ordens e tipos, que contribuem para a sua natureza dramática, desconfiada e defensiva. Ou para a necessidade extrema de agradar e buscar amor de forma tão persistente que é sentida com agressiva pelos outros gerando neles exatamente aquilo que se teme – o abandono.


As relações são “perigosas”, os vínculos são perigosos e isto gera um sentimento de desadequação de não pertencer, que reforça a dificuldade que têm em ser “como as outras pessoas”, rejeitando as regras e as convenções. Mas estar desvinculado é estar sozinho e desamparado, é sentir-se rejeitado, “carta fora do baralho”, “seres de outro planeta”.

 

Quando acontecem conflitos ou roturas amorosas que a olha nu podem parecer “habituais e de menor importância”, toda a estrutura de identidade destas pessoas, vulnerável, é sentida como demolida e os comportamentos dos outros são interpretados como muito drásticos, agressivos e abandónicos.


Sendo esta a visão da pessoa que está em grande sofrimento, não admira que as suas reações sejam tão duras e intensas, autênticas catástrofes emocionais, em que a dificuldade em regular as emoções e pontuar as “agressões externas” sentidas, se torna óbvia e perturbadora até para quem com estas pessoas lida.


É frequente as pessoas que pertencem à rede social destas pessoas, descrever incómodo ou ansiedade na sua presença, ou medo do que possam fazer e da sensação de caos e imprevisibilidade que revelam aos outros, reforçando a inconsistência dos seus modos de estar.


A solidão destas pessoas é profundíssima; o sentimento de vazio, de encontrar lá no fundo de si algo tão intenso que não lhes permite identificar e gerir as emoções, é tão forte que quase se pode tocar. A sua dificuldade em serem autênticos consigo e com os outros, é imposta pela necessidade de se defenderem deste sofrimento.

 

As pessoas com características borderline querem amar e podem fazê-lo. Mas não fazem ideia de como o fazer.

 

As pessoas com doença borderline são resilientes, são pessoas que lutam sem parar, exigem dos outros aquilo que lhes faz falta, mesmo que depois não saibam como lidar com esse amor e esse vínculo que lhes é oferecido. Nessas alturas, quando alguém é muito importante para elas, podem desqualificá-la ou desvalorizá-la precisamente por ser tão importante. É como se todos tivessem sempre aquém porque, na verdade, sentem que ninguém lhes “tira o medo”. O medo de não serem gostados, de parecerem ridículos ou “pequenos” (nos variados significados) de as relações não terem “pernas para andar”, porque a vida lhes ensinou que nenhuma tinha.  E esse ensinamento, tornou-os exigentes, como se os outros tivessem de estar constantemente disponíveis, cheios de energia, atentos, em ação.

 

Não encontrarem o seu lugar, é desesperante. A contradição que sentem entre a necessidade do outro e o medo da intimidade, é desesperante. E o desespero concorre para as tais reações agressivas, desproporcionadas, descontroladas, difíceis de gerir pelos outros e por si próprio e que, por isso, os levam a interiorizar a raiva tendo autodestrutivos.

Aquilo que nomeamos frequentemente de manipulação, por vezes é apenas uma dessas tentativas desesperadas. E, para tal, aqueles que convivem com alguém com esta doença podem muitas vezes assistir ao recurso à mentira como uma tentativa de criar uma versão de si e da realidade mais positivas. Estes comportamentos não têm o objetivo de maltratar ou instrumentalizar o outro, tem sim o objetivo de criar uma oportunidade de serem ajudados, validados, quando sentem que não conseguem mais suportar a dor psíquica.

 


Como posso fazer um diagnóstico para saber se sou Borderline?

 

O diagnóstico de perturbação Borderline pode ser feito formalmente pelo médico psiquiatra e, em termos sintomáticos, também pelo psicólogo. Qualquer profissional de saúde mental precisa de conhecer bem a sua história, ou do seu ente querido, para poder fazer este diagnóstico.

 

A questão de dar nome ao padrão é sempre discutível, mas da minha experiência as pessoas preferem poder dar nome ao que sentem. Isso ajuda-as a perceberem que não estão sozinhas, a fazer escolhas que beneficiem o seu tratamento e bem-estar e, pelo facto de se tratar de uma “dificuldade com nome”, uma doença, conhecer o diagnóstico pode aliviar os sentimentos de culpa e os julgamentos que os outros e o próprio fazem e sentem enquanto consideram que os comportamentos e sentimentos da pessoa com esta doença são controláveis voluntários. Ninguém escolhe ficar doente – o diagnóstico retira esse peso à pessoa em sofrimento.


O diagnóstico informa, organiza a informação, dá sentido ao que está a acontecer e facilita a procura de respostas que façam a diferença, o que, por si só, aumenta a esperança e traz à pessoa doente e à sua rede de suporte, maior sentido de agência para lidar com tudo o que se passa.

 

A existência de um diagnóstico formal e estruturado, permitiu avaliar cientificamente que cerca de 2% da população geral sofre deste padrão emocional e relacional. Como lhe pode parecer pouco, deixe-me que lhe diga que isto é uma expressão de doença muito maior do que a que existe em doenças que conhecemos melhor, como o Alzheimer, por exemplo. Sabemos que esta população específica tem, em mais de 60% dos casos, outros diagnósticos (de ansiedade e depressão, por exemplo), que cerca de 75% revelam comportamentos autolesivos e que cerca de 10% morrem de suicídio.

 

Isto são informações muito importantes, reveladoras de grande sofrimento. Estas pessoas não são pessoas maldosas, com falhas de carácter ou desagradáveis: são pessoas em grande sofrimento, que vivem connosco e perto de nós. É uma doença fortemente relacional e, aliás, algumas das suas características só se manifestam verdadeiramente nas relações íntimas.

 

A pessoa não é, contudo, o diagnóstico. E essa questão nunca deve sair da nossa mente e do nosso coração estamos a apoiar alguém nesta situação, qualquer que seja o nosso papel na vida dessa pessoa.


 

Como agir quando convido com uma pessoa com a perturbação de borderline?

 

As pessoas que convivem com as pessoas com perturbação borderline, reconhecem sobretudo, a instabilidade emocional, a fraca tolerância à frustração, a irascibilidade, a dificuldade em estabelecer vínculos e outros sinais como, a grande dificuldade em lidar com situações de stress, a tendência para se auto-sabotarem, e a hipersensibilidade à crítica e às injustiças.

 

Estes sinais - assim como outros, podem permanecer a vida toda, embora seja comum que diminuam com o aumento da idade, exceto a angústia de abandono, os sentimentos de vazio e a instabilidade nas relações, que tendem a manter-se pelo desenvolvimento.

 

Dicas para familiares e amigos:

 

  • compreensão do sofrimento, em vez de se afastarem perante a intensidade emocional;

  • validarem os sentimentos mesmo que lhe pareçam exacerbados ou desproporcionais;

  • informarem-se junto de fontes seguras acerca do que significa esta perturbação Borderline;

  • foco nas competências da pessoa separando-a claramente do seu diagnóstico;

  • enfatização da sua natureza resiliente; lembre-se que eles lutam sempre, tentam sempre mostrar o que precisam;

  • contribuir para uma vida estruturada, o que significa, contribuir para as rotinas, horários, planeamento, hábitos de vida – estas pessoas têm dificuldade em estabelecer estas estruturas sem qualquer ajuda;

  • incentivar a procura de ajuda especializada e participar naquilo que lhe for pedido e possível, sem comprometer a autonomia e a individualidade da sua pessoa;

  • não se esqueçam de que precisam da vossa própria rede de suporte para poder cuidar e de que precisam de ter os vossos limites bem claros. Isto é importantíssimo quando está em relação com pessoas tão intensas e potencialmente instáveis;

  • Não tenham medo. O medo impede uma relação genuína, de cuidado e de amor.

 

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